03/09/2021 - Marcia Di Domenico, da VOCÊ S/A
Ao longo de anos, o homem acostumou-se a olhar para a
natureza como uma entidade a serviço da humanidade ou algo distante para ser
contemplado. Essa mentalidade, no entanto, está cada vez mais desconectada dos
dias atuais.
Apesar da abordagem inovadora, a biomimética não é
exatamente uma disciplina nova. Há quase dez anos, atletas de elite da natação
já deslizavam na piscina vestindo maiôs feitos com material que imitava a pele
de um tipo específico de tubarão. Ao reduzir o atrito do corpo com a água e dar
um impulso extra para se deslocarem, o tecido permitia que os esportistas
nadassem mais rápido com menos esforço.
Outro exemplo surgiu décadas antes de a biomimética ser
sistematizada como disciplina: um engenheiro suíço quis resolver um problema
real que enfrentava no dia a dia e acabou inventando um material que até hoje
facilita a vida de muita gente no mundo inteiro: o velcro. Leonardo da Vinci há
mais de cinco séculos já produzia esboços de máquinas voadoras com base na
observação da anatomia e do voo dos pássaros. A biomimética começou a ganhar
popularidade há pouco mais de 20 anos por meio do trabalho da bióloga americana
Janine Benyus, cofundadora do Biomimicry 3.8 e do Biomimicry Institute, que
oferecem serviços de consultoria e educação sobre o tema.
Embora pouco conhecida no Brasil, a metodologia foi apontada
em 2014 pela revista Forbes como uma das cinco principais tendências que vão
orientar os negócios do futuro. Um estudo da Universidade Nazarena de Point
Loma, na Califórnia, estimou que a disciplina deverá representar 300 bilhões de
dólares no PIB dos Estados Unidos e gerar 1,6 milhão de empregos no país até
2025.
Modos de usar
Pelo método desenhado por Janine Benyus, existem duas formas
de criar usando a biomimética. A primeira é partir de um desafio ou necessidade
real (como filtrar água, fixar objetos em uma superfície ou economizar energia)
e investigar de quais estratégias a natureza dispõe para resolver tarefa
semelhante.
A outra é olhar para determinado fenômeno natural, forma ou
função desempenhada por um organismo ou sistema e pensar de que maneira ele
pode ser útil e reproduzido na prototipagem de produtos ou soluções. Por isso
os treinamentos invariavelmente contam com períodos de imersão em áreas verdes
(de praças urbanas a reservas florestais).
A metodologia pode ser aplicada tanto em criações tangíveis
— um novo produto, ferramenta ou projeto — quanto em coisas intangíveis, como
estratégias de gestão em uma empresa. Medicina, arquitetura, transportes e
geração de energia são algumas das áreas que vêm desenvolvendo inovações com a
bioinspiração.
No Brasil, esse mercado ainda é insipiente, em parte porque
a retração econômica dos últimos anos levou muitas organizações a cortar investimentos
em pesquisa e desenvolvimento. Mesmo assim, startups e empresas com viés de
impacto social e inovação começam a olhar para a metodologia como forma
alternativa de trabalhar valores humanos sem tirar o foco dos negócios. Seja
qual for o caminho, as jornadas criativas usando a biomimética pressupõem
trabalho em equipes multidisciplinares e diversas, em que a soma de
conhecimentos favorece uma análise mais profunda dos contextos a serem
trabalhados e, consequentemente, a inovação.
É o chamado biomimicry thinking. “Um bom projeto geralmente
envolve profissionais vindos de áreas como engenharia, biologia, design e
negócios, que trazem saberes e visões de mundo complementares”, diz Ricardo
Mastroti, biólogo, mestre na disciplina pela Universidade do Arizona e
consultor.
No Brasil, há poucos especialistas habilitados para
facilitar jornadas com a biomimética e não existem cursos de especialização
nessa disciplina. Algumas faculdades a oferecem na graduação de design, engenharia
e arquitetura.
Também é possível encontrar cursos livres (online e
presenciais) e participar de vivências de imersão em reservas naturais para
exercitar o olhar e o pensamento com a biomimética e praticar a prototipagem
com ela.
Compreendendo organizações como ecossistemas complexos,
pode-se buscar na inteligência da natureza inspirações para trabalhar
competências e resolver problemas do dia a dia corporativo.
“Os valores que hoje norteiam modelos de negócios inovadores
e uma nova economia são os mesmos que a natureza usa há milhões de anos em
seus processos, como resiliência, descentralização, colaboração e eficiência”,
diz o biólogo Ricardo. No meio ambiente há uma floresta de ideias esperando
para ser semeada pelas organizações.
Verde de novo
Os irmãos Pedro e Bruno Rutman, de 29 e 32 anos, conheceram
a biomimética como disciplina da graduação em design da PUC-RJ, onde se formaram.
Criados na cidade de Lumiar, na região serrana no Rio de Janeiro, o contato com
a natureza sempre foi uma realidade e trabalhar com restauração florestal um
desejo.
Como projeto de graduação, Bruno criou um dispositivo para
plantio de mudas em larga escala, o Nucleário, com design inspirado nas
bromélias (que acumulam água entre as folhas e atraem biodiversidade para o
entorno) e na serrapilheira (camada de folhas e galhos secos que se forma no
solo sob as árvores e mantém a umidade e os nutrientes do terreno), entre
outros elementos da natureza.
O desenvolvimento contou com consultoria multidisciplinar
(de biólogo, agrônomo e engenheiro florestal) até chegar à versão atual. O
Nucleário venceu em 2018 o Ray of Hope, concedido pelo Biomimicry Institute a
soluções inovadoras para mitigar mudanças climáticas. Pedro e Bruno são os
primeiros e únicos brasileiros a conquistar a premiação, de 100 000 dólares.
A meta da startup é ser uma solução de plantio para
restauração de todos os biomas brasileiros – até o momento, trabalham na Mata
Atlântica e no Cerrado. “Nosso alvo são empresas que demandam e adequação
ambiental em larga escala”, diz Pedro.
Outro olhar
A especialidade do escritório de arquitetura Natureza
Urbana, em São Paulo do qual o arquiteto Pedro Lira, de 40 anos, é
sócio-proprietário, é projetar estruturas em parques e praças que facilitem a
visitação e interfiram o mínimo possível nos ecossistemas locais.
Na busca constante por novos olhares para a natureza, Pedro
chegou à biomimética e envolveu sua equipe em uma série de workshops com a
metodologia. Ele aponta os ganhos de projetar usando a metodologia. “Além de
mais sustentável, existe uma vantagem técnica nesse tipo de projeto, que já
nasce com a garantia de eficiência da natureza.
Também é possível criar construções mais inspiradoras e com
história para contar”, diz. Mas também fala dos obstáculos para expandir o uso
da mentalidade na arquitetura.
“São projetos mais complexos e que demandam mais tempo,
entre investigação dos processos da natureza, a criação e o desenvolvimento das
soluções. Além disso, ainda há poucos profissionais preparados para pensar
projetos com a disciplina e, por ser algo inovador, os clientes também oferecem
certa resistência”, afirma.
Lições para a liderança
Depois de assistir a uma palestra sobre biomimética, Bruno
Camargo, de 44 anos, CEO da Fairfax, empresa de seguros corporativos, animou-se
para levar a metodologia na forma de workshops para dentro da empresa.
Inicialmente, ele envolveu as lideranças das diferentes unidades de negócio da
companhia.
“Vi no treinamento com biomimética um modelo inovador para
ampliar a capacidade criativa, a intuição, a comunicação e a conexão,
habilidades invisíveis que fazem toda a diferença em uma cultura corporativa
baseada em valores humanos”, afirma.
Ao longo de seis meses, os times passaram por treinamentos
internos e ao ar livre, em que tinham a oportunidade de observar de perto a
natureza e suas relações de colaboração e inovação.
“Percebemos que há links importantes entre os processos da
natureza e os da gestão corporativa, e que várias estratégias podem ser
copiadas na ideação de soluções para desafios presentes no contexto real de
trabalho”, diz o CEO.
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