06/11/2020 - Schayla Jurk
A história do povo ali, diante
dos olhos e materializada em esculturas, pinturas e gravuras. Os traços da
memória de crenças, lendas e costumes determinam a arte popular. O poeta Ferreira Gullar acredita que “a arte existe porque a realidade
não basta... O que eu quero é sonho”. A criatividade artística surge com a intuição
e transforma a sensibilidade em obras. “A arte é uma necessidade para todos os
seres humanos, por mais desumanas que tenham sido as condições que a vida impôs
a alguém”, destaca a educadora
brasileira, pioneira em arte-educação, Ana Mae Barbosa. Ao percorrer o
mundo, certamente já trouxemos lembranças criadas por alguém com talento que
retratam os lugares e os momentos, mas nem sempre incorporamos estas experiências
na decoração de nossas casas. Carlos Lira, Cris Iglesas e Zizi Carderari refletem
sobre a importância da arte popular numa conversa com a equipe do blog NCD. Um
diálogo que traz a percepção de que um lar com arte popular brasileira é uma
forma de trazer para dentro de cada cantinho um pouco daquilo que somos em
diferentes esferas.
Nuca e Maria - Tracunhaém (PE) - Cerâmica 4cm a 74cm - Foto: Emiliano
Dantas
Mestre Noza/Via Sacra - Painel de Cordéis Juazeiro do Norte (CE) (42 x
1m77) Foto: Emiliano Dantas
Numa proposta de encontro com o resgate da
valorização da arte popular e a utilização do artesanato na composição de
ambientes, as jornalistas e fotógrafas paulistanas Zizi Carderari, Evelyn
Muller e Manu Oristanio criaram o Projeto Sertões. Uma expedição que registra o
legado da arte popular e do artesanato. Este mapeamento revela os artesãos Brasil
afora e propõe usar essas peças nas casas contemporâneas. A jornalista Zizi Carderari, especializada em decoração e
design e também editora colaboradora da Revista Casa Claudia por quase duas
décadas, está há mais
de 20 anos literalmente “entrando na casa dos outros” com o olhar apurado sobre
as belezas e sutilezas que encontramos no espaço privado, no ato de morar e
viver e a maneira como as obras de madeira, barro, palha, junco, coco,
linho e algodão têm vida nas mãos dos artistas. Zizi Carderari conta que o significado é descolonizar esse
Brasil que tanta riqueza tem e trazer para as casas a alma brasileira, um
pertencimento que nos falta.
Projeto Sertões- Escultura de Clemilton da Ilha do Ferro, AL
recepcionando os visitantes
O projeto traz um novo sentido para a arte
popular brasileira. Seguindo os passos de Zizi, o grupo olhou para o sertão que
representa todos os interiores do país. A proposta é também criar condições para
capacitar os artesãos e ressignificar as peças. Nesta perspectiva de agregar
design aos produtos, Cris Iglesas incorporou ao acervo da Oriente-se peças que
são revelações do garimpo cultural de Zizi Carderari. A designer e ex-professora da história da arte
viaja o mundo – da Índia, a Itália e França- procurando tendências, qualidade e
inovação. É uma consultora assertiva que não se cansa até chegar ao melhor resultado
e acredita que estas obras resgatam as nossas raízes e decoram com valor de
arte. “A experiência dos artesãos brasileiros
revela diferentes aprendizados e em diferentes dimensões. Por meio da arte, dos
traços da identidade local e da força de seu ofício tradicional de cada canto
desse país, de norte a sul, do Oiapoque
ao Chuí, o trabalho estabelece relações com o meio, gerando renda e fortalecendo
a cultura local”, descreve poeticamente Cris Iglesas.
Acervo da Oriente-se
As peças trazem a história do artesão, revelam um pouco da
região em que são criadas e fazem referência aos artistas que marcaram o
passado. Neste processo arquitetos, designers e decoradores têm a missão de
incorporar esta representatividade e fortalecer a arte popular nos ambientes. O
arquiteto pernambucano e colecionador
de arte popular, Carlos Lira, explica que o
profissional tem a missão de ensinar, não pode impor. Com cuidado e delicadeza
trazer o cliente para dentro do projeto. Zizi reforça esta tese e ressalta que o cenário atual de resgate das
raízes nunca esteve não desperto. “Ainda tem todo um processo de convencimento.
Temos que mostrar mais resultados, para as pessoas entenderem e sentirem e tem
também um grande problema de logística - transporte , etc...”.
Projeto Sertões - Composição com as cerâmicas Louça Morena
puxadas a mão. Proj @anasawaia
Nesta linha de difundir a arte
para valorizar o jeito de morar, Carlos Lira é um dos mais reconhecidos arquitetos pernambucanos, com quase cinco
décadas de atividade profissional e projetos em Pernambuco, em outros estados e
fora do Brasil. Ainda jovem, se revelou apaixonado pelo desenho, e esse olhar
se firmou, em especial, para a arte popular brasileira. Passados quarenta anos Carlos
Lira tem acervo de mais de cinco mil peças catalogadas e colocadas à disposição
do público. Conceituado como um dos maiores colecionadores de arte popular do
país fez questão de dividir
a história de um projeto que retrata esta cultura de desconhecimento a até
estranheza com a arte popular. “Um casal, ele italiano e ela
pernambucana, decidiram usar duas coberturas para transformar em uma só. Ela
desejou o trabalho de Carlos Lira. O marido só tinha necessidade de dizer que
queria coisa boa. Ela trouxe do Canadá cortinas e eu deveria achar uma maneira de
incluir este elemento no projeto. Durante um longo período fiz ela ver e
entender novas coisas. Num dia muito a frente, ela desistiu das cortinas porque
já tinha incorporado novos gostos. Na hora de escolher os quadros, não fui
junto, definiu por obras acadêmicas e populares. A informação que obteve sobre
arte popular abriu os olhos para novas possibilidades”.
Mestre Noza/Via Sacra - Painel de Cordéis Juazeiro do Norte (CE) (42 x
1m77) Foto: Emiliano Dantas
Neste percurso para incluir
a arte popular na criação de projetos que incluem as manifestações artísticas de
todo país está a representação de objeto inigualável. “São movimentos
de fé, de arte, de cultura do barro, da madeira, das fibras naturais, as rendas
da herança portuguesa. Esta é a convivência harmoniosa de um país tão rico em
sua cultura”, destaca Cris. Perdemos quando não valorizamos a arte popular no nosso cotidiano, nas
nossas casas e na nossa vida. “O que perdemos ou nunca tivemos? Identidade
Brasileira”, revela Zizi. Afinal, o encanto está no significado e no talento de
um artista que retrata a sensibilidade e traz afeto para dentro de casa. “A casa tem
que transmitir a alma da pessoa. Conhecer o ser humano, as características do brasileiro
são fundamentais para projetar. As pessoas estão buscando a arte popular porque
traz o inusitado. Sai do lugar comum. A arte evita a casa sem história”, instiga
Carlos Lira.
Projeto
Sertões- Banco do Artista Boró da Ilha do Ferro na CasaCor Rio
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